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Cronos e Kairós, tempo acelerado e tempo perdido

 

 

"A plenitude irracional da vida ensinou-me a nunca descartar nada, mesmo quando vão contra todas as nossas teorias, ou quando não admitem nenhuma explicação imediata".

 

C.G. Jung Citado por Richard Wilhelm, I Ching, o livro das mutações.

 

 

                   Cronos e Kairós 


                   Cronos devora seus filhos
                   com frieza e voracidade,
                   provocando ausências,
                   solidão, distanciamento.
                   Cronos é o relógio,
                   o tempo que não volta.
                   Kairós é o tempo qualificado
                   da amizade,
                   do companheirismo,
                   o tempo da criação,
                   recriação,
                   do riso.
                   O nosso tempo é agora
                   sempre que n
os buscamos,
                   sempre que nos renovamos
                   em cada encontro,
                   e nos prometemos um
                   novo reencontro
                   para manter o fogo
                   que Prometeu
                   nos presenteou.

 

                   Margarete Barbosa

 

       Para Jung o inconsciente coletivo representa a conexão do indivíduo com sua dimensão universal, com conteúdo herdados que o conectam enquanto experiência singular, à toda a humanidade. Esses conteúdos são formados por imagens primevas ou primordiais, daí a denominação de “arquétipos”. A palavra deriva de “arkeya”, utilizada como a imagem essencial ou primordial de algo na filosofia platônica antiga. Os arquétipos não possuem forma definida, são “vasos” que devem ser preenchidos pela experiência única de cada ser humano. Jung construiu o conceito a partir de sua própria experiência clínica, mas sobretudo do estudo e observação de mitos, contos e fábulas em povos de diversos continentes, comprovando conteúdos simbólicos semelhantes ou equivalentes, portanto, universais. Funcionando como uma ponte de acesso entre o consciente e o inconsciente coletivo, os arquétipos conectam-se às vivências positivas ou negativas, conteúdos reprimidos ou complexos. Os complexos podem se estruturar em torno de construções arquetípicas com alta carga afetiva, consumindo e gerando grande energia psíquica. No inconsciente coletivo os conteúdos têm grande energia simbólica. O símbolo guarda sempre uma tensão entre forças opostas e um potencial de integração de partes que estão separadas.

       Essa energia é encontrada nos mitos, os mitos são grandes metáfora para o entendimento e ampliação dos conteúdos do inconsciente coletivo. Jung considerava as histórias mitológicas e sua simbologia, uma verdadeira herança espiritual e psíquica, capazes de ajudar a entender as angústias do homem e do mundo contemporâneo. Conforme Campbell (1991):

Como os sonhos, os mitos são produtos da imaginação humana. Suas imagens, em consequência, embora oriundas do mundo material e de sua suposta história, são, como os sonhos, revelações das mais profundas esperanças, desejos e temores, potencialidades e conflitos da vontade humana (...) ou seja, todo mito, intencionalmente ou não, é psicologicamente simbólico. Suas narrativas e imagens devem ser entendidas, portanto, não literalmente, mas como metáforas” (p. 49).  

       Assim, as histórias mitológicas são como uma comunicação direta do inconsciente coletivo, possibilitando a ampliação consciente para diferentes realidades vividas, medos, angústias, esperanças, dramas etc. Os mitos podem ter, segundo Campbell diversas funções (religiosa, lógica, ética e estruturante). Entre as várias narrativas mitológicas, entendemos que a dualidade proposta na noção de tempo pela história de Cronos e Kairós é emblemática da capacidade explicativa para questionar as práticas organizacionais tradicionais baseadas na unilateralidade da razão.

       O mito de Crono, um dos Titãs, (ou Krónos)[1] trata da temática do tempo na sua dimensão de construção e destruição, como o senhor do tempo, do destino e da morte (BRANDÃO, 1990). Crono no mito, é filho de Gea, a Terra, castra seu pai, Urano, o Céu, que odiava porque Urano devolvia ao útero materno todos os filhos. Do sangue de Urano, derramado sobre Gea, nasceram as Erinias, os Gigantes e as Ninfas Meliades. Jogados ao mar, os testículos formaram uma espuma da qual nasceu Afrodite. Com isso os titãs são libertos, irmãos de Crono, Urano separa-se de Géia e a vida na terra acontece. Daí deriva o termo “cronológico” (da origem grega “Cronos”) para designar o tempo finito, com transformações previsíveis, esperadas e irreversíveis, como o processo de envelhecimento.  Crono casa com Rea (ou Réia), sua irmã, e devora os filhos na medida em que nascem. Um dos filhos escapa do destino, Zeus. O tempo de Crono é o tempo da consciência, do desenvolvimento da história, das etapas que representam a evolução.

 

Cronos e seu filho - Romanelli (1610-1662)

     

        Os gregos consideravam também que o tempo de Cronos era como um juiz que revela a verdade em última instância, que provoca o esquecimento que cura.  Há outra percepção do tempo na tradição grega, que se relaciona ao “tempo oportuno”, ou Kairós (καιρός). Numa tradição ele é filho de Zeus e Tykhe, a divindade da fortuna e da prosperidade. Nessa tradição, Kairós é um jovem de corpo atlético com asas nos pés o que lhe dá mobilidade extrema, calvo, carregando uma balança numa mão e noutra uma navalha. Depois que passava era impossível de ser agarrado, trazê-lo de volta.

 

    Personificação de Kairós em mármore do século 4 a.c.   

Fonte: Museu Arqueológico em Turim

      

       Há interpretações de kairós como o tempo do Self, o “momento de Deus”, a ideia de “tempo certo”. Kairós difere dos outros deuses pois sua representação nem sempre está associada a uma imagem única, ao contrário. Ele pode ser visto na inteligência de Atena, no amor de Eros e no vinho de Dionísio. É um instante, fugaz e preciso que não pode ser medido, cuja medida não há métrica. Noutra tradição ele é filho de Cronos. Nessa segunda tradição ele tem seis filhos conhecidos como Crônidas: Héstia, Deméter, Hera, Hades, Poseidon e Zeus. Zeus aliado à Métis (filha do titã Oceano), enfrentou Crono e o obrigo a regurgitar todos os filhos, expulsando-o para o Tártaro. O exílio de Crono representa a transição dos antigos deuses para os deuses olímpicos imortais.

       O conteúdo arcaico associado à Kairós está relacionado também à sincronicidade. A coincidência não causal, nem no tempo, nem no espaço, de eventos que juntos produzem um conteúdo psíquico paralelo, complementar e interdependente, muitas vezes, em estados mais baixos de consciência (abaissement du niveau mental). Esse sentido não intencional de fenômenos que se sincronizam tem a energia de Kairós.

        Outras representações do mito configuram Cronos e Kairós como dois cavalos de uma biga, o primeiro mantem o passo, o ritmo, o segundo, arremete para frente, ataca (FREITAS, 2005). O tempo sincrônico é o tempo de Crono, o tempo diacrônico, é o tempo de Kairós.

       A seguir uma síntese das metáforas, simbologias e conceitos associadas aos dois deuses, ampliados como imagens arquetípicas: 

 

                                                  Diferenças conceituais entre Cronos e Kairós 

Dimensão

Crono (Cronos)

Kairós

Origem mitológica

Filho de Geia e Urano, pai de Héstia, Deméter, Hera, Hades, Poseidon e Zeus

Filho de Zeus e Tyhe

Natureza do tempo

Tempo físico e material

Tempo abstrato e imaterial

Medida do tempo

Tempo medido, como fluxo, esperado, previsível

Tempo único, singular, oportuno, ocasião, incerto, imprevisível

 

Associação de palavras

Morte, fatalidade, destino, monotonia, repetição, equilíbrio, ciclos, infinito, racional

Vida, surpresa, transformação, arbítrio, intuição, finito, irracional

A percepção humana

Fora do controle humano, juiz de todos, a cura pelo esquecimento

Depende das decisões humanas, viver o presente,

o tempo não contínuo, não cronológico

A dimensão do sagrado e da sincronicidade

Tempo terreno, da mortalidade humana, profano

Racionalidade

Masculino

Instante sagrado ou dos deuses

Eventos de sincronicidade

Intuição e emoção

Feminino

 

Fonte: elaborado pelo autor

 

 

       Cabe observar, contudo, que para os gregos Cronos funcionava como um pano de fundo, absorvendo Kairós, sendo o contrário, impossível. Kairós é a energia humana imprevisível e transformadora que irrompe a monotonia cíclica do tempo cronológico. Ou seja, novamente o princípio das polaridades que se completam, dos contrários que são interdependentes, são dois princípios opostos, mas relacionados.

       Como observou Tiscareño (2009):

Cronos representava o tempo linear, aquele que nos consome e nos conduz até a morte...é o tempo da viagem que nos conduz do nascimento à morte e marca também, o início e o fim de cada lapso de nossas vidas sem importar-se se tais fragmentos temporais são plenos de tempo, ou são somente percebidos em sua passagem. Trata-se de um tempo quantitativo. Kairós, por outro lado...simboliza o momento de felicidade, de mudança, de inovação ativa, de oportunidade...pode ser visto, também, como uma experiência interior dos seres humanos, de distensão anímica (p. 226, tradução do autor)

       O tempo kairológico é um de passagem transformadora que encontra uma brecha no tempo “plano” e “linear” de Cronos. Honkanen (2007), propõe que o tempo de kairós é um tempo que sugere uma quebra, uma ruptura na cadeia linear cronológica. É como uma dimensão transversal que atravessa a uniformidade dos acontecimentos, em kairós pode-se “chegar antes de sair”. Esse potencial destruidor/transformador de kairós foi claramente assinalado por Jung (2013):

O desenvolvimento da arte moderna...deve ser entendido como sintoma e símbolo de um espírito universal de decadência e de renovação do nosso tempo. Esse espírito se manifesta em todos os campos, tanto político como social e filosófico. Vivemos no kairós da “transformação dos deuses”, dos princípios e símbolos fundamentais. Essa preocupação do nosso tempo, que não foi conscientemente escolhida por nós, constitui a expressão do homem inconsciente em sua transformação interior. As gerações futuras deverão prestar contas dessa modificação e de suas graves consequências, caso a humanidade queira se salvar da autodestruição ameaçadora de seu poder técnica e ciência.” (§585)                             

       Nesse pequeno trecho onde Jung discute o problema do autoconhecimento, o tempo kairológico aparece como o pano de fundo das transformações “do nosso tempo” causadas pela crise simbólica gerada pela ameaça de autodestruição.[2]  A compreensão da dualidade e conexão entre os princípios de Cronos e Kairós, com já vimos, também é importante para entender o significado da integração do inconsciente individual com o ego, o processo de individuação.

       Fazendo uma possível ampliação e conexão entre abordagem dos tipos psicológicos junguianos e o conceito de tempo baseado na percepção arquetípica de Cronos e Kairós pode-se chegar a achados interessantes. Os tipos sensação, voltados para o aqui e o agora, valorizam mais o curto prazo e tem mais dificuldades para manejar visões de longo prazo ou futuros prováveis e potenciais. Organizações sensação tem baixa capacidade imaginativa em relação ao seu próprio futuro. Já os tipos intuitivos, estão ao contrário, voltados para possibilidades futuras, concentram-se quase que exclusivamente lá, nesse lugar distante, projetando metas e objetivos, utopias longínquas. Os intuitivos concentram-se nos processos de como chegar até esse lugar. Os tipos sentimentos baseados em seus próprios valores, se voltam mais para o passado, para a preservação de uma trajetória. As organizações sentimento, projetam o futuro como uma repetição do passado. O tipo pensamento experimenta a condição temporal como um contínuo entre passado, presente e futuro, uma percepção linear, como um fluxo dinâmico, eterno e cíclico.

       A abordagem junguiana desconstrói a noção de causalidade unilateral. Uma segunda camada que se ergue sobre a primeira, aqui analisada, é compreensão do poder de influência do inconsciente coletivo, da carga arquetípica sobre a experiência individual. A dualidade Cronos / Kairós, tomada nesse ensaio como exemplo, demonstra a potencialidade exploratória dessa abordagem.[3] A interpretação junguiana do comportamento individual e coletivo como resultante de forças arquetípicas em tensão permanente, ou como disse Jung, os arquétipos são os leitos dos rios por onde correm a pura energia psíquica coletiva, fornecendo significados simbólicos, integrando consciência aos conteúdos internos, inspirando, revelando, iluminando, tanto para gerar possessões e psicoses, como momentos criativos e libertadores. A simples consciência de uma energia arcaica é variável desconhecida no mundo do management, talvez, por isso também, suas práticas sejam tão neurotizantes e psicóticas.

 

Referências:

BRANDÃO, J.  Mitologia Grega, vol. 1. São Paulo: Vozes, 1990.

CAMPBELL, J.  A Extensão Interior do Espaço Exterior. R. Janeiro: Campus, 1991.

FREITAS, L.  Grupos vivenciais sob uma perspectiva junguiana. Psicol. USP, vol.16, no. 3., 2005.

HONKANEN, K. Aion, Krnos and Kairos: On Judith Butler´s Temporality, 2007.

Hollwitz, J.  Individuation at Work: Considerations for Predition and Evaluation. In: Stein, M. and Hollwitz, J. (editores). Psique at Work: Workpace Applications of Jungian Analytical Psychology. Wilmette, Illinois, Chiron Publications. 1992.

JUNG, C.G. Tipos Psicológicos, Obras Completas, 6, 8ª edição, Editora Vozes, 2013b

TISCAREÑO, R. Entre Cronos Y Kayros. De Guadalupe Valencia In. Noesis. Revista de Ciencias Sociales y Humanidades, Vol. 18. N. 36, 2009.

 [1] A interpretação da renascença associou a palavra grega “Cronos” ao deus “Cronos”. Embora gráfica e foneticamente sejam diferentes. Segundo alguns autores a associação foi motivada pela posição de Cronos na mitologia como um deus da primeira geração, de um passado inconcebível, do tempo que tudo devora e outras semelhanças (BRANDÃO, 1990).

[2] Jung escreveu impactado pela explosão das primeiras bombas de hidrogênio nos anos 1950.

[3] Nos anos 2000, a literatura gerencial disseminou a expressão “Mundo VUCA”, o que seria um acrônimo para Volatility, Uncertainty, Complexity e Ambiguity, para ajudar os gerentes a entender e planejar num ambiente de forte insegurança. Um olhar arquetípico poderia explicar essa percepção com muito mais consistência e profundidade, pois trata-se exatamente da energia kairológica em conflito com a energia cronológica em plena realização.

 

Texto: Jackson De Toni - Especialista em Psicologia Junguiana

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